sábado, 24 de outubro de 2009

O Encontro

Ela acordou animada, sequer reclamou quando o despertador acordara desesperado e insistente. Arrumou-se com zelo, apreciou seu rosto delicado em frente ao espelho e saiu ritmada pela Sinfonia 41, a Júpiter - última de Mozart.
Caminhou por calçadas deterioradas e sujas enquanto analisava os próprios sapatos vermelhos e os alheios rostos inexpressivos. As nuvens formavam uma cortina à frente do sol e ela notou que logo mais uma certeira garoa deitaria sobre a cidade mal-humorada. O homenzinho de braços abertos do sinal tornou-se vermelho, proibindo-a de atravessar as faixas paralelas marcadas no chão. Encostou-se no poste para aguardar descansada. Nesse instante, porém, ela o viu.

Os dois encontraram-se no olhar. Milésimos de segundos, conectados e invadidos. Duplamente fascinados.

Ela lançou um sorriso tímido, abaixou os olhos timidamente, levantou-os de novo, fitaram-se mais uma vez. Ele pôde sentir seu cheiro, imaginar a textura de sua pele e provar o gosto de seus lábios: previsões. Deu alguns pequenos passos na direção dos olhos maquiados, apresentou-se e deslizou o indicador sobre a face delicada. Sorriu por completo, a envolveu em seus braços e foram os dois até o café da esquina, para conhecerem-se e apaixonarem-se.

Despertou do transe e procurou-o sem sucesso. O homenzinho tornara-se verde, algumas dúzias de pessoas atravessavam as listras paralelas. E ele sumira, como todo bom pretendente transeunte.

sábado, 10 de outubro de 2009

Segredos

Miúda, pernas finas e cheias de hematomas infantis, ela gosta de sentar nos degraus que dão para a rua para observar as pessoas, seus passos, suas roupas e suas esquisitices. Calça um par de chinelos velhos que quase não cabem mais em seus pés. O vestido doado pela sobrinha da vizinha sobra para todos os lados, as alças insistem em descuidosamente cairem por sobre os ombros magros. Os dedos compridos interrompem a organizada fila das formigas e caçam os tatus-bolas que também passam por ali.
O vento balança as folhas da macieira no quintal ao fundo. Um vento sutil e musicado, faz-lhe carinho nos cabelos compridos e cacheados, anéis loiros brilhando sob o sol forte do verão. Ela os enrola no mesmo dedo onde enrolou-se também o tímido amigo tatuzinho. Sorri para a senhora que vende doces. Os doces - chamativos, provocantes e tentadores - que ela nunca pôde comprar. É capaz de imaginar os sabores e como derretem na boca; sonha com o dia em que terá moedas suficientes para pagar aquela preciosidade. E sorri mais uma vez; para si mesma, para as ideias que alimenta lá dentro.
O sorriso é de dentes minúsculos e intensamente brancos. Ele abre covinhas, buracos delicados nas bochechas sardentas e rechonchudas. Aquele mesmo dedo da brincadeira com os insetos desliza sobre a cavidade, porque ela acha aquilo engraçado.
Uma voz grossa, forte o suficiente para penetrar-lhe na alma, a chama. O sorriso, a covinha, o indicador curioso: tudo se esconde. Tenta fingir que não escutou, mas o homem repete seu nome, ainda mais agressivo. Ela se vira lentamente, como se o vento agora fosse toda uma tempestade. Seus olhos caminham aos poucos pelo pobre e maltratado jardim, findando por chegar aos pés descalços e calejados que tanto conhece. O homem começa a esbravejar e reclamar por sua demora. Fraca, vencida... Ela levanta como se pesasse toneladas. De tristeza.
Limpa o vestido e anda na direção dos pés descalços. Eles viram mãos, que abrem a porta, que a empurram para dentro. Ela olha para os lados, à procura da saia rendada e do avental maternos; uma busca desesperada e certamente improdutiva. Ouve um grito, estremece. Aquelas mãos tomam-lhe o braço, ela sente-se quebrar por inteiro, imagina-se em cacos, espalhados pelo chão. Seria melhor do que a realidade.
A porta atrás de si é fechada e trancada. O homem a joga na cama estreita, o urso de pelúcia olha com piedade. E ela fecha os olhos. De novo aquelas mãos, aquele cheiro insuportável, aquela dor - é capaz de sentir tudo antes mesmo do princípio. Já não há resistência, não há esperança. Ele não vai parar até conseguir o que quer. E quando termina, as mãos que vagaram pelo corpo num repugnante desejo surram-na, porém ferem-na menos do que antes.
O algoz vai embora. Ela abraça o amigo urso, acaricia delicadamente suas orelhas macias. E chora. O choro traz o sono, e no sonho ela pode fugir.

domingo, 30 de agosto de 2009

Para sempre?

Luís era ainda Luisinho. Andava relutante de uniforme azul, vermelho e branco, tênis novo no qual acabara de treinar a técnica de amarrar os cadarços, meias tão brancas quanto as madeixas da Vovó Matilde, o cabelo dividido no meio e a lancheira do ThunderCats gelada do Toddynho. A mãe insistia, puxava, enumerava argumentos para defender a idéia de que escola era um lugar muito divertido e importante, onde ele conheceria vários amiguinhos.
Amiguinhos? Ele se questionava, por que precisaria de mais amiguinhos? Tinha o primo, o vizinho e os brinquedos, estava bom demais. Imaginar mais pessoas que fossem dividir suas coisas, propôr outras brincadeiras... Isso não era nem um pouco legal. Mas ele era obrigado a ir naquela tal de escola. Restava-lhe rogar milhares de pragas sobre quem teria inventado essa coisa sem sentido e continuar a caminhada forçada.
Chegaram os dois no portão colorido. A mãe entregou-lhe a mochila (também do ThunderCats), deu-lhe um beijo, disse meia dúzia de palavras falsamente animadoras. Uma moça de avental sorriu e puxou conversa. Sua mãe lhe ensinou que não se podia dar informações para estranhos, portanto recusou responder o que ela lhe perguntava. Como se apresentou como sua professora, porém, ele achou melhor obedecer e dizer até o que não precisava.
Entraram na sala, ele ocupou um lugar. Tirou o caderno, o estojo e percebeu os olhares. Evitou nos primeiros momentos, mas ao final da tarde já estava lá, chamando Paulinho para brincar de bafo (percebeu como este tinha várias figurinhas interessantes que ele procurava!). Eis o primeiro dia de aula, o primeiro amigo. Com o tempo já não chamava só Paulinho para as brincadeiras - conhecia todos e até falava para a mãe que os queria como convidados na sua próxima festa de aniversário.
Por anos foi isso. Amigos eram sinônimos de diversão. Pouco conversavam sobre o mundo, sobre as pessoas. Tudo era ligeiramente irreal, fantasioso, lúdico. Bastavam os brinquedos, as risadas, as brigas e alguns choros. Nada que não fosse possível resolver com o intermédio das mães.
Aniversários regados a bexigões e decorações - de dar inveja às melhores cenografias televisivas - aconteceram. O passar dos anos provocou o asco de Luisinho por essa denominação diminutiva. Pegava mal, principalmente na frente dos amigos. "Amigos, mãe, eu sou grande já! Amiguinho não!!" Contava com quase uma década de idade já, uau. E não gostava de incluir meninas em seus projetos e relacionamentos; não aguentava a forma como reclamavam, como eram nojentas, como choravam por causa de um empurrãozinho. Abominava. Enquanto isso, adorava agredir os coleguinhas, contar histórias mais interessantes que as deles. Começou a ter noção de que amigos nem sempre fazem coisas legais. Mas existia videogame, futebol... Dava para resolver. E assim seria para sempre.
Depois de mais alguns anos, a adolescência chegou. Meninas, hum! Como ficaram interessantes, diferentes e tentadoras. A outrora Lolô, agora Heloísa, peitudinha, coxa chamando atenção nas aulas de Educação Física, repetia a todo momento que os dois haviam crescido juntos, que ele era um grande amigo. Nesse dia decidiu que amizade com mulher inviabilizava qualquer alívio sexual. E se enfiava no banheiro.
Para os amigos contava histórias de sexo alucinado, posava de garanhão. Comentavam das amigas de sala, das vizinhas, alguns atreviam-se a falar da irmã alheia. Luís (ou melhor, Luisão: era o mais alto), filho único, podia falar de qualquer uma.
Mas não bastavam as conversas sobre sexo. Conheciam de forma mais vasta a música, começaram a experimentar coisas juntos, reclamavam dos pais, da vida. Luís planejava morar com alguns deles, dividir um apartamento no centro onde pudessem levar quem quisessem, fazer festas a hora que desejassem.
Perguntava aos mais íntimos o que fazia em relação à Heloísa, e foi com a ajuda deles que os dois se beijaram, que os dois se agarraram, que os dois transaram. Amigos. Luís traduzia essa palavra numa vastidão impressionante; era a solução dos seus problemas, o seu futuro, seus segredos, seus medos. Todos estavam praticamente no mesmo barco, sentiam a mesma coisa. Seus amigos eram ele próprio. E assim seria para sempre.
Pena que ninguém fica toda a eternidade na escola. Terceiro colegial, aquela vadiagem no primeiro semestre inteiro, o desespero depois das férias de julho. Luís se sentia o mais perdido em relação a seu futuro, não tinha idéia sobre o que ser para o resto da vida. Paulo, o Paulinho daquele primeiro dia de aula, decidiu-se pela Medicina, preparava-se para mais alguns anos de cursinho. E ele, na dúvida.
Forçaram-no a fazer teste vocacional, a visitar faculdades, a conversar com profissionais. Jornalismo, pronto. Sempre gostou de escrever, de investigar - achou que era o suficiente. O Ensino Médio acabou, várias festas rolaram, Heloísa chorou em seus braços, ele a pediu em namoro. Alguns amigos reclamaram, se afastaram, lhes parecia que Luisão perdia a graça sem a vida de solteiro pegador como a deles.
Formados, uns já foram para a universidade, outros para o cursinho (como ele mesmo e o amigão Paulo), outros ficaram vadiando escondidos na desculpa de que precisavam decidir sobre a profissão. Prometeram, entretanto, que não se separariam, que se veriam sempre, alguns fizeram pactos de amizade até a velhice.
Isso aconteceu? Inicialmente sim. Só que a vida se encaminha, novos amigos aparecem, Heloísa conhece um cara mais interessante, o trabalho começa a consumir a vida nova. Agora eles se falam via internet (quando o destino os coloca online na mesma hora).
Depois, chegado à casa dos 20 e poucos anos, Luís cursa a faculdade, dirige, mora sozinho. O Paulo alugou um apê no mesmo quarteirão, está sempre lá. Novos amigos surgem: da balada, do trabalho, da vizinhança, conhecidos dos conhecidos. Tudo muito passageiro. Mulheres, os grandes problemas, discutidas e analisadas em mesas de bar, em partidas de sinuca. Comê-las, sempre. Procurá-las mais, talvez. Casar-se, jamais.
Mas desde sempre o ser humano morde sua própria língua. Luís, formado, conhece a prima de Paulo. Com todo respeito: que foda, que noite! Precisa procurá-la mais vezes, uma caça inusitadamente deliciosa. E os amigos fazem piada, dizem que ele está amarrado, fazem sinal para chamá-lo de encoleirado. E Paulo dá força, talvez por também estar aflitivamente interessado por uma ruiva do trabalho.
Ele muda de emprego, conhece outros tantos amigos. As conversas andam mais sérias, mais densas. Luís decide, sem ouvir os solteirões convictos: quer viver com Eduarda até o fim de sua vida. Ama e nessa hora os colegas o respeitam, talvez porque também amem às escondidas, talvez porque também desejam amar.
Anos e mais anos. Luís é pai, jornalista conhecido, apresenta os primeiros cabelos grisalhos. Os amigos do colégio não vê faz muitos anos. Os do trabalho... Mudam alguns, outros permanecem. Surgem novos, nem todos fiéis e verdadeiros o suficiente para ficarem. E Paulo, categoria à parte, agora compadre, irmão.
Enfim, a velhice. Os filhos têm sua própria família, a própria vida. Aposentadoria. Já nem sabe por onde andam os caras do trabalho, das partidinhas de futebol, de golfe. Sua vida anda limitada: idade é sinônimo de dor. Prefere um vinho e um jantar bem preparado, uma conversa longa, divagações.
Conta nos dedos de uma mão aqueles que são amigos, que merecem sua confiança e seu respeito. Mas cada ano morre um. E sobra Paulo, o amigo de bafo, de álcool, mulheres, faculdade, família, vida. E assim será, para sempre até também partirem os dois.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

XX é diferente de XY

Carolina não usa esmalte vermelho porque gosta de dar para todo mundo; é bonito, ela acha fashion, só isso. Mariana usa decote e estampa de oncinha, mas não é puta nem piriguete - aliás, faz seis meses que não transa nem dá uns amassos mais empolgantes com um cara. Juliana deu na primeira noite que conheceu Otávio. Por quê? Afinidade e atração incontroláveis, ela nunca tinha feito isso antes. Mas Otávio saiu dizendo para os amigos que Juliana era "bem gostosa mas fácil demais, vadiazinha, só serve pra uma fodinha casual". Já Laura recusou a ida à casa do bofe delicinha: eles tinham saído poucas vezes, o dito cujo teria má impressão. Nunca mais ligou. Olívia esperou, esperou e o cara da balada não agia. Solução? Foi lá puxar assunto e jogou uma indireta que surtiu efeito. Pena que depois dos beijos cinematográficos o sujeito tenha mandado uma mensagem chamando-a de saidinha, perguntando se ela estava afim de uma suruba com uma ex-namorada dele. Olívia, indignada, mandou o sujeito para os infernos (ou coisa pior) e ele revoltou-se: "Você vem toda moderninha me agarrar na balada e agora tá fazendo cu doce?". Suzana conheceu um homem incrível. Mais velho, experiente, culto e agradável. Ela se entregou de corpo e alma, acreditou ser a mulher mais sortuda do universo! O porém logo veio - o maduro era casado e não entendeu por que Suzana sentiu-se ofendida quando ele disse que independente disso poderiam continuar a relação. Bruna buscava tratar da melhor maneira possível os colegas de trabalho, de ambos os sexos. Um dos homens, entretanto, interpretou a coisa erroneamente e lançou uma "cantada baixo-nível". Esquentadinha, ela deu-lhe um bom tapa na cara e mesmo assim foi obrigada a ouvir desaforo. Paula engravidou do bonitão da academia; quando contou, ele sumiu. Antes a chamou de safada golpista e mandou que ela arranjasse outro "otário pra bancar essa merda de criança". Vitória... Vitória é amiga de todas elas. Impetuosa, por ora desistiu dos homens. E comprou um vibrador.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Adeus sem lenço branco

É difícil ver alguém partir. Talvez seja ainda mais difícil quando o alguém parte devagar, perdendo-se e fazendo-se perder dos demais a cada dia. O adeus extenso é tão ruim porque você não é capaz de acenar e simplesmente virar as costas; é como se fossem dados passos para trás em sentidos opostos, os olhos vidrados no do outro, a mão ainda estendida.
É assim que eu vejo meu pai partir. Aos poucos, em cada momento que ele sente dor, que ele geme, que ele nos olha numa tentativa de soltar o grito que sua garganta já não pode mais produzir.
O silêncio de seus olhos suplicantes me dá reviravoltas no estômago e uma aguda sensação de dor extracorpórea. Suas pernas endurecidas e quase imóveis exigem uma força dos braços e da alma. A respiração difícil enche meu peito de angústia. As dores, a aflição e o mal estar, é tudo tão constrangedor para uma pessoa saudável como eu, mas acima de tudo... é perturbador.
Por isso tudo eu me perco. Em determinadas horas é revolta, depois desespero, logo vem a tristeza, seguida do desconsolo apático. E tudo parece bem mais penoso.
Há 2 anos, ainda de pé e falando, ele disse que eu não precisava ter medo, que dali em diante viveríamos cada momento sem pensar no futuro. Nunca consegui encarar as coisas assim, e agora é ainda mais difícil. Ele ainda tenta, com certeza, pois mantém o riso, escreve poesias com o mínimo movimento da mão, nos manda beijos pelo olhar e tenta sobreviver como pode. Ainda é forte, por nós dois.
Enquanto isso, eu me preparo. Para o dia seguinte, para o próximo obstáculo da doença, para a partida. E mantenho os meus olhos sobre ele, cada um dando seu passo para trás, com as mãos estendidas.


[às vezes é bom desabafar]

domingo, 26 de julho de 2009

Quando 2 + 2 = 0

No exercício da matemática mais imperfeita do mundo: é assim que o ser humano vive e se relaciona. Ninguém entende as incógnitas, as leis, os princípios e não sabe usar as fórmulas; mas todos fingem dominar os conceitos.
Talvez o mundo precise de mais sinceridade e menos orgulho. As conversas francas e as demonstrações claras de sentimento resolveriam todas as equações, dos casos de paixão avassaladora aos choques familiares.
Ou é isso ou minha visão de mundo que anda muito ácida.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Declaração

Eu choro e tudo continua meio ruim. Meio, porque uma professora da 3ª série me ensinou a ser comedida. Na verdade, eu já era, só fiquei mais.

sábado, 11 de julho de 2009

Ponto final pra recomeçar.

É fome e vontade do que logo dá nojo. Felicidade repentina proveniente de um aborrecimento relevante. Preguiça de fazer nada. Abatimento de tanto animar-se. Raiva passageira que perdura por dias. Desprezo pela importância de tudo. Sorte de sempre dar azar. Saudade de tudo que está perto. Tristeza nascida num momento de alegria. Amnésia das lembranças mais significativas. Doce amargura do azedo da vida. Revolta por aquilo que se entende. Gritos mudos de injustiça. Mudas vozes de ingratidão. Devoção descrente por um futuro que não surgirá. Inércia de um movimento inconstante que mantém-se firme. Sentido que não tem percepção.
Vc sabe o que é? Eu não sei. Só sinto. Só sinto muito.

domingo, 10 de maio de 2009

Feliz dia das mães

Quando criança eu observava minha mãe arrumando-se para sair. Acreditava que ela era a mulher mais elegante do mundo: sapatos lindos que eu ansiava usar, maquiagem bem feita, cabelos bem cuidados. Entendia que eu havia nascido no ventre da mulher mais inteligente, mais culta e que nenhuma outra tinha tanto a ensinar como ela.
Mantinha, porém, um medo evidente da minha mãe. Sempre foi uma mulher brava. Meus irmãos mais velhos já estavam na adolescência quando eu ainda aprendia a escrever e ler, e talvez por isso via com mais intensidade como eram fortes os seus sermões e incisivas as suas ordens. Por isso fui uma criança relativamente "bundona" - evitava fazer coisa errada, mesmo que fosse arte de criança, por receio do que pudesse ouvir dela. E assim nasceram os "Mãe, posso sentar no chão? Vc lava a minha roupinha?" ou o "Mas minha mãe não vai gostar!", que eu sempre repetia para os primos e amiguinhos.
Fui crescendo e comecei a avaliar o mundo ao meu redor. Então surgiram as primeiras discussões com a matriarca. Descobri defeitos que antes aparentavam não existir, acreditei que ela implicava demais com algumas coisas e tudo mais que os filhos adolescentes pensam.
Não posso dizer que minha relação com ela agora seja realmente maravilhosa. Discutimos bastante, discordamos em determinados assuntos, pensamos diferente sobre várias coisas. Às vezes ela me irrita, sei que a irrito muito mais.
Mas tem horas que fico pensando no quão forte e corajosa ela é. Passou uma infância dura (com uma mãe bem mais autoritária do que ela mesma), teve um primeiro casamento difícil, criou uma filha a duras penas. Mais tarde criou filhos "adotados", o que exigiu uma certa adaptação e uma grande mudança de vida, afinal a partir daquele momento eram 3 crianças e posteriormente mais uma, eu. Aturou anos de briga com a família do marido e por obra do destino teve que engolir algumas coisas para aceitar a presença dessas pessoas mais tarde.
Nos últimos 2 anos, abdicou consideravelmente de sua vida para cuidar do amor da sua vida, o meu pai. Dia e noite, o alimenta, lhe dá remédios, alivia suas dores, chora junto, acaricia; e em algumas horas demonstra-se impaciente e geniosa.
Mas mãe é isso: uma mistura de defeitos imperdoáveis e qualidades supremas. No fim das contas, estas últimas sempre pesam mais.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Caras e Bocas

Há alguns anos uma menina fitava o espelho. Os olhos grandes e curiosos vasculhavam cada milímetro de sua imagem refletida. Devo dizer que ela adorava contemplar-se, imitar outras pessoas, representar personagens e cenas de novela, cantar cheia de trejeitos, fazer caretas: tudo isso na frente daquela coisa mágica que mostrava seu reflexo e que também invertia a ordem das palavras escritas.
Naquele dia, entretanto, ela se deteve com uma indagação do futuro, porque talvez foi quando percebeu que as pessoas se transformam e envelhecem. Então, uma ideia lhe passou pela cabeça: como ela seria daqui alguns anos?
O cabelo seria comprido, afinal ela nunca pôde abandonar todos os inúmeros tipos de corte estilo chanel. Bem que poderiam surgir alguns cachinhos, afinal aqueles fios lisos nunca conseguiram manter sequer uma presilha ou um simples rabo-de-cavalo. A boca, os olhos - ficariam iguais? Os lábios talvez tornariam-se mais carnudos, como os da maioria das mulheres que apareciam em revistas. Se bem que o da mãe...
As bochechas! Como ela queria que diminuíssem, ficariam mais bonitas assim. Ainda mais quando pudesse se maquiar de verdade! Seria baixinha ou alta como o pai? Bom, ela achava mulher "pequena" mais charmosa. Que ficasse magrinha, não era pedir muito. E a voz? Não conseguia se imaginar com voz mais de adulta, nem muito fina nem muito grossa.
Projetar sua própria imagem de anos depois era impossível. Mais difícil que divisão com dois números na chave.
O que aconteceu? Ela cresceu. Virou essa Winnie, um pouco diferente do que imaginara. Uma coisa manteve: essa mania de fazer projeções e previsões.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Partida

De todos os amores e de todas as paixões, só aquela restou. Nas outras? A dor da perda, a dor de corno, a dor da separação de consentimento mútuo, a dor do sentimento platônico ou do não correspondido, a dor na falta de dor.
E todas elas se foram. O que lhe restou foi a cerveja sempre gelada, o amendoim e o jogo nas quartas e finais de semana. É, não é preciso terapeuta ou antidepressivos quando se tem futebol. Mesmo nas derrotas.
E ali está ele, de novo sozinho. Seu amor, sua vida: em jogo. Os dias anteriores passaram lentamente, as projeções e palpites rolaram. É aquele sentimento de adolescente (ou de imaturo) apaixonado, que não sabe se confia plenamente na amada ou se mantém a pose como forma de segurança. Mas ele anda confiante, promete se entregar de corpo e alma. E assim o faz.
No dia marcado, lá está o dito cujo. Roupa alinhada, de acordo com a ocasião. As mãos, geladas, transpiram e tremem. Medo bobo, ele diz a si mesmo. Chega no local e espera. Os minutos se estendem, aterrorizando-no. Alguns outros homens tentam puxar papo, mas a garganta dele está seca e sua voz entala entre as amídalas.
É quando ele vê. Entrando, deslumbrante, em preto e branco. Não são 11 jogadores como tentam nos iludir os olhos; é o Corinthians - uma unidade feita do todo da paixão de um torcedor fanático.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Ficaí a verdade

"(...) Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos
Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão
Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes
Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também."

Trecho do poema O Desespero da Piedade, Vincius de Moraes.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Rotina de estrada

Simpática, sorriu para a atendente, colocou a revista no balcão e pediu a passagem para Corumbá: qual horário?, pode ser no próximo, preferência por assento?, prefiro janela, tenho na poltrona 19, pode ser, R$ 183 no convencional senhora, ok, maquininha imprimindo passagem, caneta riscando, troco devolvido, obrigada senhora tenha uma boa viagem, obrigada e um bom trabalho querida.
A mala era razoavelmente pequena, uma muda de roupa para desmentir a história de que mulher não sabe ser comedida na hora de arrumar as tralhas para viajar.
Apesar disso, porém, o rapaz veio ajudar: precisa de ajuda?, não tá leve, magina a senhora grávida já carrega peso suficiente, ah se não for te incomodar, claro que não, obrigada.
Plataforma 16, o mocinho de bigode mal crescido levantou, ela agradeceu, o outro depositou sua bagagem ao lado da cadeira e foi embora. Um calor miserável e uma criança insuportável ao lado, berrando por "Tódinu, mã!".
O ônibus encostou, um povo mal educado achando que o ônibus vai partir sem eles, desesperados para jogar as malas na cara do ajudante da empresa de ônibus e se refestelar na poltrona - alucinados pela janela, mesmo que seja pra fechar a cortina e não ver a paisagem durante o percurso todo.
Passado o tumulto, ela entrega sua passagem para o motorista (a cara do Dráuzio Varela!). Pesa a perna, a barriga empina, a mocinha do primeiro banco oferece a mão como apoio. Agradecida, ela alcança o corredor, procura por seu lugar e acomoda-se. "Senhor, que aquele moleque chato do Toddynho não sente do meu lado!". Sabe, sentimento materno aflorando incrivelmente...
Mas é ele mesmo que vai na poltrona 18. "Esqueci minha fita crepe, porra!" A mãe dá uns tapas, comenta como o sono perturba uma criança, pergunta de quantos meses ela está, qual o sexo, o nome... aquele papo todo.
Enfim o ônibus sai. A mãe fecha logo os olhos, buscando o mesmo sono do filho. E ela vai ler a reportagem sobre celulite, finalmente.
Dorme logo, acorda, come, o trajeto é interrompido para uma corrida coletiva alucinada em busca de coxinha numa lanchonete duvidosa de beira de estrada. Ela vai, compra umas besteiras, a romaria toda volta. Quilômetros. Sol, chuva, pôr-do-sol, dorme, acorda. Parada policial.
Ok, ela precisa fingir que vai ao banheiro. A barriga entala no pouco espaço que o menino libera, os fardados entram, ela se assusta, tropeça, é jogada pra cima do cara da poltrona do lado oposto, a roupa enrosca em alguma coisa, ela cai no chão.
A senhora tá bem?, ai me desculpa que vergonha, não tudo bem bateu a barriga?, não ela tá...
A roupa rasgou! O sujeito olha com cara estranha e o menino solta um "Mã, ela tem uã alnofada na baíga?". O guarda se aproxima, ela tenta fugir para o fundo do corredor. Em vão. O policial a puxa pelo braço, dá um riso de sarcasmo, arranca a barriga e fura. "Bonito, hein minha senhora!"





"Mulher de 32 anos supostamente grávida é presa em ônibus que saía de São Paulo para Corumbá. Durante uma blitz da Polícia Rodoviária, um incidente revelou que sua barriga era falsa. Intrigados com o fato, os policiais cortaram o tecido e encontraram 2 kg de cocaína em seu interior. Ainda não se sabe onde seria feita a entrega, pois a suspeita não quis responder às perguntas feitas na hora do flagrante, mas a Polícia acredita que a droga seria levada até a fronteira com o Paraguai.(...)"

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Jogo dos 7 erros

Às vezes eu esqueço que somos pessoas para as outras diferente do que somos para nós mesmos.
Esqueço do quanto aparentamos ser coisas diferentes da realidade, do quanto escondemos alguns fragmentos da nossa personalidade. E, ao mesmo tempo, de como algumas pessoas são capazes de nos mostrar lados ocultos que possuímos.
Alguém escreveu que sou um tanto rebelde, que "não levo desaforo pra casa", apesar de uma fragilidade levemente evidente. Nunca imaginei que passasse essa imagem para alguém, a não ser pelo lado frágil de ser. Mas é verdade: brigo, grito, xingo... e acabo no choro.
Não suporto uma injustiça, não gosto de estupidez injustificável, não aguento seguir uma discussão calada, apenas ouvindo. No calor da coisa, me recuso a aceitar uma atitude errada de minha parte, minha culpa no cartório. A razão é minha, a última palavra tem que (ou deveria) ser minha e a minha voz, a mais alta.
Quem conhece ou já passou por esse meu lado? Quem mora comigo, quem me conhece a mais de 5 anos, quem tem uma relação íntima comigo... Talvez a grande parcela de pessoas que esteja contida na minha vida não, porque insisto em ser simpática, para que sejam comigo. Até um ponto.
Porventura isso seja depreciador, porque quanto mais alguém me conhece, mais se decepciona - afinal os conflitos são proporcionais à intimidade.
Whatever, nunca falei que não tinha defeitos. Grandes defeitos, eu diria.