quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Falta

Domingo faz seis meses que existe essa saudade. Uma saudade que me acompanha nos sonhos, quando me vejo com ele - conversando como antes, andando na beira da praia como gostaria de ter feito, vivendo situações que nunca se realizarão.
E acordar (ou voltar a dormir, naqueles minutos que precedem o sono) só acontece se também existir essa saudade. Não é uma lástima proposital, um pesar incentivado ou uma tristeza alimentada. É apenas a falta. De tudo. Dele por completo.
Daqueles olhos verdes serenos, escondidos nas armações pesadas de um astigmatismo que herdei. Os mesmos olhos que demorei 18 anos para ver produzirem lágrimas. Dos pés magros que tinham uma habilidade incrível com a bola e que levavam-no para todos os cantos, nas suas longas caminhadas. Falta das mãos de dedos compridos (tão parecidas com as minhas) que tanto me beliscaram de forma delicadamente maliciosa, mas que também me acariciaram com um afeto imensurável. Daquele sorriso iluminado, que fazia sorrir não só a boca, mas todo o corpo.
Sinto falta das brincadeiras e piadinhas que eram a sua marca registrada. De ouvi-lo falar do Santos e menosprezar o Corinthians com argumentos que eu não conseguia rebater. Observá-lo chegar do trabalho e jogar-se no chão ao brincar com a cachorra. De viajar com ele de motorista, parando em cada curva para se deliciar das paisagens. De vê-lo admirar os passarinhos e o verde, como se tivesse nascido no meio do mato. De relembrar o quanto errava meus presentes de Natal ou de todas as vezes que se negou a entrar no mar para me acompanhar, na sua fobia de água. Dos seus passos largos, da sua letra tão bonita, do seu jeito engraçado de falar francês. Das suas poesias, assim como das palavras carinhosas em bilhetes ou abraços.
O que mais sinto falta, porém, é da segurança que ele me transmitia. Da força que me passava, mesmo nos momentos mais difíceis. Do seu amor incondicional pela profissão, pelas pessoas e pela vida. Até mesmo quando ela lhe trouxe dor e um diagnóstico irreversível.
Sinto falta apenas de olhá-lo, de tê-lo ao meu lado em silêncio.

Saudade. Cotidiana e onipresente. Que me faz chorar e sentir um vazio e um medo inexplicáveis. Mas uma saudade que precisava existir, para que ele pudesse descansar.

A gente se encontra nos sonhos, pai.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Espelho, espelho meu

Quando ainda feto, Aline era projeções, rascunhos e sonhos. Seus pais imaginavam como ela seria, com quem se pareceria, se teria olhos esverdeados como os da avó paterna, se teria cabelos cacheados como os da mãe, qual seria a cor da pele, o formato da boca - essas suposições bobas e essenciais da gestação. Ela mesma, porém, ainda sequer havia notado sua própria existência - que dirá sua fisionomia.
Nasceu numa madrugada chuvosa de março, sadia e careca. Tinha manchas escuras nas costas frágeis, denunciando sua futura cor do pecado. A cara de joelho não declarava qualquer outra certeza quanto à sua aparência, mas era impossível não notar o nariz de batata do pai.
De recém nascida ao primeiro "mamãe" que proferiu, sua fisionomia foi definindo-se pouco a pouco. Aos 4 anos, era uma menina magricela e pequena, olhos bem escuros e fundos, bochechas proeminentes, boca grande, rosto ovalado, cabelos negros em cachos definidos, pés e mãos delicados e o já conhecido nariz de batata. Vestia-se como a mãe preferia, apresentava sempre uma trança nas madeixas e um brinco discreto nas orelhas miúdas.
Alfabetizada e uns centímetros mais alta, com 7 anos acreditava ser dona do próprio nariz. Escolhia o que vestir, gostava de usar uma coleção de pulseiras coloridas, brincos coloridos, tiaras e presilhas coloridas. Indignava-se com os anéis negros do cabelo e mordia-se por dentro ao ver as amigas lisas, mesmo que tão mais sem graças que ela. Ria da gordinha da sala, da míope, da muito branca, da muito negra...
Com uma década de vida, odiava o que considerava ser "roupa de criança". Queria andar na moda - dos adultos. Descobrira o mundo dos esmaltes e exigia hora marcada na manicure toda semana. Alisava o cabelo, tomava sol na beira da piscina com uns óculos de sol enormes, descoloria os poucos pêlos do corpo e usava salto.
Três anos depois, tinha coleção de scarpins. Sua maleta de maquiagem daria inveja a muitas mulheres maduras e criava um ritual diário: base, corretivo, pó, blush, sombra, rímel, lápis e gloss. O cabelo - cada vez mais liso - agora possuía mechas loiras, porque os homens preferem as loiras. E estava sempre de dieta, para evitar sua natural tendência para coxas grossas. Ao debutar, era exemplar de Barbie. Gastava 7 horas do dia para dormir, 6 forçadas na escola, 1 no salão de beleza ou no spa e 4 na academia.
Antes dos 18, já havia feito duas cirurgias: silicone nos seios e um nariz fino e pontudo em substituição àquela criação horrenda da genética. A pele alaranjada era efeito do bronzeamento artificial e o cabelo, cada vez mais claro, não tinha qualquer vestígio do que um dia fora. Piercing na barriga lisa e definida, no nariz recém (re)criado, nas orelhas queimadas pelo secador. Cartão de crédito com faturas homéricas em roupas, acessórios e itens de beleza. Bulimia nas horas vagas.
E com o passar do tempo, vieram o botox, o preenchimento labial, os remédios para emagrecimento, os inúmeros tratamentos estéticos para estria, celulite e gordura localizada, a rotina de exercícios cada vez mais intensa e louca, os poucos quilos, o silicone na bunda e algumas dívidas pelo consumo exacerbado.
Com 40 anos, Aline não tinha mais expressão facial. Era uma versão piorada de Elza Soares e Donatella Versace. Pesava o mesmo que uma criança de 10 anos e casara-se com 5 maridos ricos diferentes, que não aguentaram seu vazio intelectual, sua neurose estética e seus excessos financeiros.
Morreu com menos de 50. Sozinha, numa madrugada chuvosa de março, de overdose de remédios para dormir.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Espera

Sentada no calor dos poucos raios de sol que entram no quarto, ela pensa. Em todas as conversas, sorrisos, intenções e desejos. Em como tudo foi e é inesperado e envolvente, tão bom e inusitado. Em como quer aquele abraço, aquele beijo, aquele carinho. E também pensa em quanto quer sentir muito mais do que as palavras ditas já fizeram-na sentir.
Sentir-se confusa, envergonhada, feliz, desejada, meio boba, leve. Mulher e menina. Sentir o que ele sente, frente a frente. Sem medo ou dúvida. Tocar, saborear, inspirar e ouvir - com intensidade. Matar o carrasco de todos os dias: a vontade.
Depois de pensar, ela imagina. Cenas, frases, lugares e o que ele acha disso tudo. Porque ela é uma incógnita para si própria e ele, o desconhecido. Um caminho despretensioso que surge quando menos se espera e leva a lugares completamente novos.
Há uma estrada, porém, entre essas dúvidas e certezas. Quilômetros estranhos e intrometidos que ele desgosta e amaldiçoa. Distância que ela não digere e que lhe causa receios. E eles aguardam o momento em que um deles - ou os dois - cruze paisagens e cidades, até chegar em dias aguardados com certa ansiedade.
Entretanto, ela pondera. Difícil, complicado, talvez trará problemas e situações desagradáveis, envolveria histórias já finalizadas. Mas naquelas noites cotidianas tudo parece mais real e mais sedutor. Ela se deixa levar, possivelmente ele também. E cada vez mais esperam o encontro, futuro.

sábado, 19 de junho de 2010

Quando você foi embora fez-se noite em meu viver
Forte eu sou mas não tem jeito, hoje eu tenho que chorar


Obrigada, pai. Descanse em paz.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Pode rir

Estava eu, me recuperando de uma prova terrível de teoria da comunicação, quando as pessoas ao meu redor começam a falar de situações esdrúxulas ou indecorosas. Eu falo muito naturalmente e quanto mais gente estiver envolvida na conversa, mais eu abro a minha boca - o que, inevitavelmente, me faz dizer coisas que eu deveria guardar para mim ou ao menos não contar para as outras 40 pessoas ali presentes. Vexame, a gente vê por aqui.
Logo, se 40 indivíduos sabem, não custa contar pra alguns outros poucos que passam por aqui.

Num determinado mês de julho, há alguns bons anos (não sei quando porque minha memória é uma merda), viajamos eu, mamãe, papai e um casal de primos da minha mãe. Fomos de carro para Chapada Diamantina, no interior da Bahia. Já não sei se o ocorrido foi na ida ou na volta, antes ou depois de eu ter me encantado com aquele lugar maravilhoso. Sério... Paisagens incríveis; uma pena que na época eu era muito pequena e não sabia tirar fotos (não que eu seja uma fotógrafa profissional agora).
Mas voltando ao causo: ida ou volta, whatever. Era de noite e acho que estávamos em Minas Gerais. Um frio terrível, muito terrível e minha mãe e a prima falando sem parar. Eu, esmagada no meio das duas, ouvindo aquela conversa ininterrupta de São Paulo até a Bahia, e vice-versa. Por algum problema em relação à rota ou à bexiga de um dos passageiros (eu avisei sobre a memória), paramos num posto policial.
Foi então que eu vi. Homens encapuzados, todos de preto, segurando armas. Juntei os elementos e pronto - achei que eram ladrões, terroristas ou qualquer coisa do gênero e comecei a berrar loucamente dentro do carro:
- NÃO PARA, PAI. NÃO PARA!
Todos, nesse instante, ficaram meio perdidos e ao mesmo tempo preocupados, me perguntando o que afinal estava acontecendo. Daí eu respondo, ainda insana e tremendo dos pés à cabeça:
- É LADRÃO ALI! É LADRÃO!
Assustam-se todos e olham, então, na direção que eu apontava. Meu pai volta o olhar pra mim e sentencia:
- São os policiais de balaclava, Winnie, porque tá frio.

Fim.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Quereres

Amanhã, como a maioria dos poucos leitores deste blog sabe, é meu aniversário. Por isso, como um presente para mim mesma, resolvi tomar algumas resoluções. Na verdade, uma única: eu preciso de intensidade.
Quero ter coragem de arriscar, cometer insanidades, ignorar a opinião e o consentimento alheios. Rir até perder o fôlego, beber e perder o juízo, chorar até expulsar todos os meus medos e as minha dores. Permitir-me agir por impulso e ignorar meu cérebro que insiste tanto em pensar demais. Ser inconsequente em algumas ocasiões.
Quero sentir o coração pulsando, a respiração ofegante. Ultrapassar meus limites e temores, não envergonhar-me diante de determinadas circunstâncias, buscar o novo e enfrentar sem resistência as mudanças e transformações que surgirem. Em certos momentos, escolher o incerto.
Quero incendiar-me. Provar amores enérgicos, paixões febris. Conhecer e desvendar amizades. Absorver um pouco de cada pessoa e entregar a elas um bom pedaço de mim. Sugar o mundo. Sentir-me em turbulência, instável e volátil.
Quero mergulhar com tudo nas experiências. Me afogar em mares de novas oportunidades, mesmo que eu não saiba aonde possam me levar. Escancarar portas de caminhos desconhecidos. Proclamar as minhas verdades sem receio e questionar tudo o que me é imposto. Procurar meu lado decidido, resoluto.
Quero ser leve. Derrubar toda a rigidez que existe em mim. Viver de excessos, às vezes ou em boa parte do tempo.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Sinta

Gritos, exclamações e insultos são escutados ao longe. Adentrando na intimidade daquele quarto gelado, vê-se dois corpos ativos e tensos. Mergulhados em suas convicções, em seus próprios pontos de vista, sem que exista a possibilidade de calarem-se para ouvirem. Salivas disparadas no ambiente, um suor nervoso dissipando-se pelo ar, cordas vocais agredidas, dedos erguidos em denúncia, gestos grotescos de revolta ou incompreensão. Respiração ofegante, garganta seca, lágrimas contidas ou derramadas sem vergonha. Ranger de dentes, músculos contraídos, sobressaltos e retrocessos. Paira ali uma agressividade mútua, algumas palavras desmedidas e inexistente razão.
Então o cansaço os abate. Ofegantes e fatigados, repousam sobre a cama. Distantes, até caírem num sono perturbado.

Em algum outro lugar, só ouvidos atentos podem captar os sussurros. Mãos deslizam sobre ambos os corpos, a pele arrepia-se no mais suave dos toques. Palavras solitárias preenchem o profundo silêncio e ressoam como poemas, cânticos. Bocas umedecidas encontram-se, separam-se e experimentam sensações, revelando fraquezas tão ternas e delicadas quanto intensas. Falta-lhes o ar, o controle sobre si mesmos: eis a entrega. Cadenciados e harmoniosos, sentem-se leves, quase inexistentes. Ao mesmo tempo, muito vivos. Coração pulsando desregulado, sorrisos íntimos e olhares que invadem-se. Sentidos explorados até o último instante.
Então o cansaço os abate. Ofegantes e fatigados, repousam sobre a cama. Conectados, até caírem num sono acolhedor.

domingo, 18 de abril de 2010

Ora pois, patrícios!

Conversa verídica, escutada no ônibus, num domingo qualquer:

"- Ai, eu sempre achei essa coisa de chamar português de burro puro preconceito, até que comecei a trabalhar com eles.
- Jura? Por quê?
- Lá na Empresa X eles fazem muito negócio com gente de Portugal, então eu tinha muito contato com eles. Cada história, menina, de morrer de rir.
- Conta uma!
- Uma vez fui buscar um português no aeroporto, pra levar até a empresa. O sujeito pegou uma bagagem lá mas não conseguia abrir com a chave que ele tinha, foi reclamar e tudo com o pessoal do aeroporto!
- Hahaha Tinha pegado mala errada?
- Aham. Tinha duas malas iguaizinhas, ele pegou a que não era dele. Daí tava ele lá, reclamando, xingando o pessoal 'Como uma coisas dessas pode acontecer num aeroporto, ó pá?!', indignado. Até que chegou uma menina, com uma mala igual a que ele tinha pego. Quando ela viu ele lá, já entendeu tudo e quis trocar.
- E aí?
- Aí que o portuga surtou. hahaha Começou a gritar: 'Ora pois, esta rapariga roubou minha bagagem!'
- hahahaha Que doido!
- Pior é que a coitada da menina foi explicar pra ele que as bagagens só tavam trocadas. Pegou a chave dela, foi lá abrir o cadeado da mala que estava com ele e falou: 'Tá vendo, moço? Minha chave abre essa mala, tá trocada. Ó as minhas coisas aqui!'.
- Aí ele se conformou?
- Que nada! Ele apontou o dedo pra cara dela e disse 'Pois tire suas roupas da minha mala, rapariga!'"

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Só?

A menina está sozinha, observando as folhas caídas pelo chão e a teia de aranha construída sobre o banco. A intensidade com que respira denuncia o que sente por dentro: confusão. Ela está perdida, fragilizada e vulnerável.
O mundo transformou-se numa estrada um tanto quanto obscura e ela procura nos rostos estranhos algum olhar terno, a fim de encontrar proteção. Quer um abraço sem fim, um afago que ultrapasse o limite do corpo e lhe cubra a alma de paz.
Talvez esteja agressiva, o que significa apenas medo. Medo do que sente, do que imagina, do que lembra... Do que é agora: uma menina sozinha.
Então ela se cala e deixa fluir a corrente de águas turbulentas. Às vezes percebe-se sem forças e reduzida a fragmentos desconexos. Em outros momentos, alia-se à esperança - amiga imprescindível neste momento.
E assim as horas passam. Tudo passa, e isso a acalenta.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Compras

Saia rosa de bolinhas pretas, regata branca, tênis encardido e um guarda-chuva verde-limão junto com a enorme bolsa entraram no mercadinho empurrando a porta de vidro. Ela olhou para o balcão, onde estava o velho barbudo, sempre de cara fechada para os clientes e vestido com o desbotado avental - já não tão - verde.
Suspirou. Havia apenas três corredores à frente, então pensou que provavelmente seria bem fácil achar o que precisava. Deu um passo e parou. Qual escolher? TPM maldita, sempre me deixa indecisa, pensou. Decidiu-se pelo corredor do meio e seguiu com mais uns dois passos.
A primeira coisa que avistou foi uma caixa branca, com três letras prateadas em relevo. Aproximou-se e pôde ver pássaros e nuvens desenhados na embalagem em linhas finas. Paz, não era disso que ela precisava.
Vidrinho cor-de-rosa com purpurina anunciando Amor. Um pó verde fluorescente num frasco minúsculo com uma mensagem de "frágil" logo abaixo à Esperança. Um líquido vermelho incandescente provocando os olhos, borbulhando até aquecer e exibir a palavra Tesão. Uma pasta cinzenta num tipo de balde tampado, gotas deslizando sobre a superfície da embalagem anunciando a Tristeza. Nada disso, entretanto, era seu foco.
Sem notar, já estava no fim do corredor. Olhou a alta prateleira que encontrava-se ali, mas os nomes não condiziam com sua procura: Insegurança, Medo, Ternura, Coragem... Nunca imaginou que tão pequeno estabelecimento concentrasse tamanha variedade de produtos.
Já disposta a ir embora, abaixou os olhos em sinal de derrota. Surpresas da vida, lá estava ele. Um cilindro preto, contendo em seu interior uma cápsula incolor. Lembrou-se da aula de Ciências de muitos anos atrás: "água - incolor, inodora e insípida". Mas aquilo não era como água, longe disso. Seu cheiro, fétido e incômodo. Seu gosto, amargo e insuportável.
Pegou-o com certeza e levou até o velho mal-humorado, que espantou-se com a compra. Confirmou o pedido, informou-lhe o preço e recebeu o dinheiro. Ele ainda olhava com surpresa quando a saia rosa de bolinhas pretas, regata branca, tênis encardido e um guarda-chuva verde-limão junto com a enorme bolsa foram embora.
Na rua, ela andou até o parque, o lugar perfeito. Tirou o cilindro do embrulho, abriu-o e, sem hesitar, levou a cápsula até a boca e engoliu. Em segundos, a tampa com a inscrição Morte caía no chão.