segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Espelho, espelho meu

Quando ainda feto, Aline era projeções, rascunhos e sonhos. Seus pais imaginavam como ela seria, com quem se pareceria, se teria olhos esverdeados como os da avó paterna, se teria cabelos cacheados como os da mãe, qual seria a cor da pele, o formato da boca - essas suposições bobas e essenciais da gestação. Ela mesma, porém, ainda sequer havia notado sua própria existência - que dirá sua fisionomia.
Nasceu numa madrugada chuvosa de março, sadia e careca. Tinha manchas escuras nas costas frágeis, denunciando sua futura cor do pecado. A cara de joelho não declarava qualquer outra certeza quanto à sua aparência, mas era impossível não notar o nariz de batata do pai.
De recém nascida ao primeiro "mamãe" que proferiu, sua fisionomia foi definindo-se pouco a pouco. Aos 4 anos, era uma menina magricela e pequena, olhos bem escuros e fundos, bochechas proeminentes, boca grande, rosto ovalado, cabelos negros em cachos definidos, pés e mãos delicados e o já conhecido nariz de batata. Vestia-se como a mãe preferia, apresentava sempre uma trança nas madeixas e um brinco discreto nas orelhas miúdas.
Alfabetizada e uns centímetros mais alta, com 7 anos acreditava ser dona do próprio nariz. Escolhia o que vestir, gostava de usar uma coleção de pulseiras coloridas, brincos coloridos, tiaras e presilhas coloridas. Indignava-se com os anéis negros do cabelo e mordia-se por dentro ao ver as amigas lisas, mesmo que tão mais sem graças que ela. Ria da gordinha da sala, da míope, da muito branca, da muito negra...
Com uma década de vida, odiava o que considerava ser "roupa de criança". Queria andar na moda - dos adultos. Descobrira o mundo dos esmaltes e exigia hora marcada na manicure toda semana. Alisava o cabelo, tomava sol na beira da piscina com uns óculos de sol enormes, descoloria os poucos pêlos do corpo e usava salto.
Três anos depois, tinha coleção de scarpins. Sua maleta de maquiagem daria inveja a muitas mulheres maduras e criava um ritual diário: base, corretivo, pó, blush, sombra, rímel, lápis e gloss. O cabelo - cada vez mais liso - agora possuía mechas loiras, porque os homens preferem as loiras. E estava sempre de dieta, para evitar sua natural tendência para coxas grossas. Ao debutar, era exemplar de Barbie. Gastava 7 horas do dia para dormir, 6 forçadas na escola, 1 no salão de beleza ou no spa e 4 na academia.
Antes dos 18, já havia feito duas cirurgias: silicone nos seios e um nariz fino e pontudo em substituição àquela criação horrenda da genética. A pele alaranjada era efeito do bronzeamento artificial e o cabelo, cada vez mais claro, não tinha qualquer vestígio do que um dia fora. Piercing na barriga lisa e definida, no nariz recém (re)criado, nas orelhas queimadas pelo secador. Cartão de crédito com faturas homéricas em roupas, acessórios e itens de beleza. Bulimia nas horas vagas.
E com o passar do tempo, vieram o botox, o preenchimento labial, os remédios para emagrecimento, os inúmeros tratamentos estéticos para estria, celulite e gordura localizada, a rotina de exercícios cada vez mais intensa e louca, os poucos quilos, o silicone na bunda e algumas dívidas pelo consumo exacerbado.
Com 40 anos, Aline não tinha mais expressão facial. Era uma versão piorada de Elza Soares e Donatella Versace. Pesava o mesmo que uma criança de 10 anos e casara-se com 5 maridos ricos diferentes, que não aguentaram seu vazio intelectual, sua neurose estética e seus excessos financeiros.
Morreu com menos de 50. Sozinha, numa madrugada chuvosa de março, de overdose de remédios para dormir.