domingo, 3 de abril de 2011

Sofrer

Feche os olhos (pesados) e sinta cada pedaço em que você se transformou. Cacos, por assim dizer, como vestígios de um vaso de porcelana outrora apresentável. Perceba seu corpo quebrando: mutilado, lentamente se partindo em milímetros, de forma penosa e sem reconstituição.
Sinta aquele vapor escuro e corrosivo que enche o peito e vai silenciosamente tomando conta das suas células, ganhando consistência de uma massa disforme e pesada, até virar líquida e transparente ao cair dos olhos. Ouça sua respiração perdida e o oxigênio que lamenta a pouca força com que você enche os pulmões de ar - por descaso ou cansaço.
Abra os olhos e note que você não pode enxergar. Tudo que vê são manchas disformes e a poeira de si que cai descuidosamente no chão, deixando vestígios da demolição interior. Ao cerrar as pálpebras, entretanto, observe-se numa análise minuciosa. Ao fazê-lo, veja tudo o que um dia foi, o que outras pessoas esperaram que fosse e o que desejou ser.
E então seus músculos vão fraquejar e cada terminação nervosa provocará choques de intensidade insuportável, desumana. Suas cordas vocais vão agir quase sozinhas e sua boca produzirá um grito mudo, porque, apesar disso, não há voz.
Esse grito vai voltar para dentro de você e rasgar qualquer tecido que encontrar, provocando-lhe as papilas gustativas a sentir um gosto amargo e nojento que causará ânsia. O que você vomitará, contudo, serão sonhos perdidos, ódios inexplicáveis, mágoas trancafiadas e fracassos iminentes.
O enjoo, nesse momento, cederá lugar à sensação de falência múltipla dos órgãos. Acreditará que morreu por dentro, mas a persistente dor lhe mostrará que ainda vive. Mesmo que frágil, danificado - ainda vive.
Essa esperança vaga e sádica tomará conta de você e funcionará como um tipo de anestesia, adormecendo cada pedaço dos seus escombros. Por fim, terá sonhos intranquilos e incrivelmente reais.
No dia seguinte, porém, tudo isso será menos pior. Ou assim espera-se.